quarta-feira, 11 de março de 2015

Regulação, limpeza e exclusão: a saúde no Brasil Colônia


A Santa Casa de Curitiba (foto) foi inaugurada em
22 de maio de 1880, com a presença de D. Pedro II
e Dona Tereza Cristina. Teve, inicialmente, 160 leitos
e foi, durante muitos anos, o único hospital de Curitiba.
As Santas Casas foram importantes no período colonial
por oferecerem abrigo aos doentes, já que não havia
tratamento para a maior parte dos males e a única coisa a
fazer era minimizar o sofrimento e manter os contaminados
distantes dos sãos. A primeira Santa Casa do país foi
a de Olinda, inaugurada em 1539, segundo algumas
fontes, ou a de Santos, inaugurada em 1543 (vide nota 1).


Conhecer a história de um país, de um povo, é poder desvendar o presente a partir da lógica que orientou a formação da realidade a partir do tempo passado. 

Da mesma forma, conhecer o processo de constituição do conceito de saúde, bem como das práticas de Saúde Pública, no mundo e em nosso país, nos possibilita entender o que é a assistência à saúde hoje e, também, a pensar no que podemos fazer para melhorá-la. 

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado apenas em 1988, apesar de idealizado anos antes, como se pode perceber nas formulações da 8ª Conferência Nacional de Saúde, na qual, em 1986, ficou definida a estrutura do SUS, instituído pela Constituição Federal e no Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), de 1988, que antecipava o SUS, aproximando o Instituto de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que ainda era o órgão responsável pela assistência médica no Brasil, e o Ministério da Saúde (MS), que ficava com as práticas de combate a vetores, vacinação e vigilância sanitária. 

Mas, e antes do SUDS e do SUS? É dessa história que vamos falar agora. 


Regulação predomina 
No endereço http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/historico-da-saude/ você encontra uma excelente “Cronologia Histórica da Saúde Pública” com os registros, ano a ano, das ações de saúde no Brasil, desde o ano de 1521, quando o rei, D. Manoel, assinou o Regimento do Físico-Mor e do Cirurgião-Mor do Reino de Portugal e instituiu os Comissários-Delegados nas províncias, inclusive no Brasil. Esse fato, ocorrido pouco depois do “Descobrimento”, é importante para a história da Saúde Pública brasileira. Vale a pena conferir.

O fato é que, ao assinar o Regimento citado e instituir os Comissários-Delegados no Brasil, Portugal reconhecia a importância de regular as práticas curativas em sua maior colônia. E a Fisicatura servia basicamente para isso, para regular, legislar, fiscalizar e, conforme o caso, punir quem desobedecesse as regras. O alvo da entidade era, basicamente, os curandeiros fossem indígenas, negros ou portugueses. 

Havia três tipos de agentes de saúde “oficialmente” admitidos
1. os físicos;
2. os cirurgiões;
3. os boticários.

O problema, na prática, era que a Fisicatura regulava e proibia, mas não oferecia alternativas dentro do padrão sugerido pela Medicina europeia. O fato é que havia muito poucos médicos na colônia. Em 1789, o Rio de Janeiro, a Capital Federal, contava com apenas quatro médicos para uma população aproximada de 45 mil pessoas.  

Segundo se conta, havia grande demanda por médicos, mas não havia cursos de Medicina na colônia e os médicos portugueses não queriam vir para cá. Um dos motivos, tudo indica, estava relacionado à falta de condições de trabalho no Brasil, mais precisamente pelo fato de não haver recursos medicamentosos disponíveis, já que os remédios europeus muitas vezes só eram encontrados deteriorados na colônia. Usar a flora medicinal local parecia fora de cogitação, por desconhecimento ou mesmo por restrições impostas pela Fisicatura. 


Saúde Pública é limpeza urbana
A Saúde Pública estava quase resumida ao combate à sujeira nas cidades, tarefa que era atribuição das Câmaras Municipais. A orientação para as ações de limpeza urbana era dada pelas Ordenações Filipinas (imagem) de 1604, já citadas em outra postagem. Entre as determinações dessa legislação sanitária, estavam: 
1. a recomendação de não se fazer esterqueiras; 
2. a proibição de lançar esterco ou outro lixo ao redor dos muros; 
3. a proibição de causar o entupimento dos canos da vila ou motivar prejuízo na servidão das águas; 
4. a indicação de locais para depósito do esterco; 
5. a ordem para que cada um limpe, ante as suas portas da rua, os estercos e maus cheiros; 
6. a proibição de se lançar nas ruas animais ou coisas sujas e de mau cheiro. 

Além da limpeza urbana, havia aquilo que hoje conhecemos por Vigilância Sanitária, ou seja, a fiscalização da conservação e comércio de alimentos, com o combate a miasmas e germes, buscando evitar o contágio do mal, e a vigilância dos portos, para impedir a “importação” de doenças, fiscalizando-se mercadorias e pessoas (o desembarque era controlado e dependente de certidão de liberação). 

Para os doentes, caridade e exclusão
Com relação ao tratamento dos já doentes, havia, apenas, o isolamento para preservar a saúde dos sãos. As Santas Casas proporcionavam abrigo e amparo religioso aos moribundos, sem recursos terapêuticos a não ser para redução do sofrimento (caridade). A primeira Santa Casa foi fundada em 1539, em Olinda (PE) (1). A proposta básica era, ainda, a da exclusão pura e simples, no modelo do leprosário. 

No mais, havia a tendência a controlar a população, combatendo a vadiagem. O Rei, afinal, se preocupava muito com os súditos da colônia, pois eram eles que defendiam as posses da coroa e as faziam produtivas para a própria coroa. 

O mesmo tratamento não era dado aos nativos da terra, que sofriam com as doenças trazidas pelos europeus. Segundo se sabe, os colonizadores que queriam se apossar das terras indígenas faziam chegar aos índios roupas contaminadas com varíola, para que morressem e se tornasse mais fácil lhes tomar as terras. Em parte por conta disso, a primeira grande epidemia de varíola no Brasil ocorreu em 1563 e outras doenças foram “importadas” pelos portugueses: malária, febre amarela, tuberculose, peste bubônica, doenças venéreas etc. Toda a população da colônia estava sujeita a elas:

  • os escravizados (negros) por conta das péssimas condições de vida e de nutrição; 
  • os indígenas, por não ter defesas contra as doenças;
  • os brancos, sem vacinas ou tratamentos eficazes. 

Chega a família real e a situação começa a mudar
A vinda da família real ao Brasil (1808) criou a necessidade da organização de uma estrutura sanitária mínima, capaz de dar suporte à estrutura de poder que se instalava na cidade do Rio de Janeiro, trazendo mais gente e mais responsabilidades para a localidade. Ainda que de forma incipiente, as intervenções estatais na área da saúde se descolam paulatinamente da ação direta sobre o doente e passam a focar mais a saúde, ou a preocupação em garantir a saúde dos sãos e prevenir doenças. Tanto foi assim que, em 1846, foi fundado o Instituto Vacínico do Império.

Mas, depois a gente continua a história... 

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(1) Cronograma do surgimento das Santas Casas no Brasil: Olinda (1539); Santos (1543); Salvador (1549); Rio de Janeiro (1582); Vitória (1551); São Paulo (1599); João Pessoa (1602); Belém (1619); São Luís (1657), e Campos (1792). Informações contidas no endereço: http://www.cmb.org.br/index.php/component/content/article/25-institucional/historia/179-as-santas-casas-nasceram-junto-com-o-brasil

Porém, é interessante notar que há uma polêmica. Em  http://www.actamedica.org.br/datafiles/documentos/Santa%20Casa%20da%20Misericordia%20de%20Santos%20o%20mais%20antigo%20hospital%20brasileiro.pdf há uma informação diferente, segundo a qual a Santa Casa de Santos foi a primeira, sendo, também, o primeiro hospital brasileiro.  

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